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O Memorial do Ser e o Coisário das Coisas



 Alberto Beuttenmüller
Assotiation Internationale des Critiques d’Art

                        Diante da obra de André Lafetá, o observador se depara com a luta entre linha e cor. Luz, forma, saturação e ilusão espacial, tudo isto parece ser inato à cor. Neste contexto, o elemento raramente discutido é o problema de seu uso gráfico, ou seja, se é possível desenhar com a cor sem que esta se torne subserviente à linha.
                        No Memorial do Ser, a primeira fase na maturidade de Lafetá, o que se percebe é o uso da cor independente da linha; já no Coisário das Coisas, a fase seguinte, o que se vê é o uso da linha em primeiro plano, deixando a cor como coadjuvante. A dificuldade em conceber uma linha e uma cor empregadas como um mesmo elemento vem da tradicional dicotomia entre o linear (desenho) e o pictórico (associado ao uso abundante de cor sem ser contida pelo desenho), como registrou Heinrich Woelfflin em Principles of Art History (1915).
                        Há muitos exemplos na História da Arte: venezianos e florentinos disputaram acerca dessa bipolaridade, no fim do século XV e início do XVI, tendo como ícones, respectivamente, Ticiano Vecellio (1490-1576) e Sandro Botticelli (1445-1510). No século XVII a polêmica ficou entre Nicolas Poussin (1594-1665) e Peter Paul Rubens (1577-1640); mais tarde entre clássicos e românticos: Jean-Auguste-Dominique Ingrès (1780-1867) e Ferdinand Victor Eugène  Delacroix (1798-1863). As duas facções  nos levaram a associar a cor com mobilidade, densidade, tridimensionalidade, opticalidade e qualidades táteis.
                        A cor pode estar associada à paixão, ao romantismo, ao mistério, à sensação e às coisas primitivas, enquanto a linha tem sido relegada ao terreno da razão, do controle, da lógica, da precisão e do refinamento.
                        Percebe-se que André Lafetá preferiu seguir Matisse (1869-1954), o primeiro pintor a liberar a linha e operar tanto com a cor quanto com o puro desenho. Esse aspecto, um dos mais importantes da obra do colorista francês, se manifesta claramente nas linhas de seu quadro Joie de Vivre (Alegria de Viver) de 1906-7, que estruturam a composição inteira e independem das figuras específicas que definem.
                        O mesmo vem ocorrendo na obra de André Lafetá, notadamente na série que denominei Memorial do Ser. André pintou diretamente com a cor e implodiu a linha. Uma vez livre, a cor ganhou mobilidade e densidade. O casario de Minas, que permaneceu na memória do pintor, ganhou mais visualidade, graças a sua  poética. As cores empregadas nesses interiores de residências rurais ora se fundem, ora se confundem, ao gerar uma terceira emoção, soma das duas anteriores; ora se conflitam e os pigmentos em dissonância lutam entre si em busca de mais luz. A este respeito o crítico norte-americano Clement Greenberg observou: o delicado pigmento que absorve luz, ao invés de refleti-la, precisa ser espalhado por área relativamente grande para adquirir densidade (Greenberg, Clement in Hofman, The Pocket Museum, Paris, George Fall, 1961, p.32). Na pintura de André Lafetá isso ocorre com os vermelhos rebaixados (quase rosas) e os verdes ácidos, criando um diálogo de cores complementares. 
                        Na série Memorial do Ser, a cor não está subserviente à linha, já que não há o menor vestígio de traço; a cor perpassa as paredes interiores das mansardas, e nos lembra os versos do poema “Aniversário” de Álvaro de Campos: “O que eu sou hoje é terem vendido a casa, /É terem morrido todos, / É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...”.     

Elogio da cor na obra de Lafetá

                         Nos casarios mineiros de André Lafetá a luz invade o espaço em silêncio, e traz uma gama de tons de cores solares – amarelos e vermelhos – e de lunares – verdes e azuis –, além das diversas combinações de cores puras, primárias. O silêncio dessas mansardas desabitadas, moradas de fantasmas, cujos gestos fantasmáticos são abarcados por cores intensas, quentes, a transformar a paisagem interna, fantasmagórica, em instantes infinitos, faz-se memória, esta ruína que se faz tempo e é capaz de suscitar emoções tardias.
                        É quase impossível definir cor, dado o seu mistério. Psicólogos dizem que, ao entrarmos numa sala vermelha, experimentamos efeitos emocionais e físicos diversos dos provados em uma sala azul. Estudos psicológicos indicam que cores quentes, saturadas, produzem estado de excitação; e, cores frias, um efeito calmante. Não é o que sucede na obra de Lafetá: as cores quentes ampliam o espaço físico do interior dos casarios e oferecem ainda maior sensação de vazio, já que não há pessoas nas mansardas, apenas cores a marcar a solidão. As pessoas estão presentes nos objetos e nas coisas, notadamente no Coisário, lugar onde as coisas nascem e morrem.
                        Sabemos que a cor afeta olhos e coração, tanto física quanto metaforicamente, e de modo mais direto do que qualquer outro elemento pictórico. Se formos definir cor, diríamos que é uma sensação produzida nos bastonetes e cones da retina por ondas de luz de diferentes comprimentos.
                        No aspecto mais místico e poético – como na obra de André Lafetá –, a cor pode oscilar entre a palpitante e envolvente sensação de calor de certas telas do Memorial do Ser e a fria e revigorante sensação de espaço e luz do Coisário das Coisas.                        
                        A arte moderna descobriu que a cor é por si mesma expressão e, portanto, um dos elementos da linguagem visual. O outro é o sistema de regras (a gramática visual), que o artista usa para compor uma obra. A relação entre sistema e expressão é dialéctica e conflitante. O sistema organiza a tela de modo racional, enquanto a expressão, emocionalmente, rompe com as regras impostas pelo sistema. Assim, a pintura, desde seus primórdios, é essa proposta pendular: se o artista é rigoroso, ao dar privilégio ao sistema, ele ganha no racional e perde na expressividade. O caso exemplar é Piet Mondrian (1872-1944). Se, ao contrário, o pintor dá mais valor à expressão, ao abandonar o rigor e o racional, ele aposta no emocional. O exemplo maior é Vincent van Gogh (1853-1890).
                        Todas as academias são propensas aos sistemas rigorosos, enquanto os artistas expressivos são criadores individuais e têm estilo próprio. Podemos dar o exemplo do Pontilhismo, que formou uma escola na qual é difícil saber se uma determinada tela pontilhista pertence a Georges Seurat (1859-1891) ou a Paul Signac (1863-1935) - ao passo que Van Gogh continua sendo único, exatamente porque rompeu com todas as regras para ser único. As vezes, o pintor é mais rigoroso numa tela e mais expressivo noutra, mas, de modo geral, ele acaba por optar por um dos dois caminhos. Na obra de Lafetá, nós ficamos diante dos dois caminhos. Percebemos rigor no uso da cor, no diálogo entre os tons, diálogo sempre dissonante que amplia o nosso sentir diante da memória.

Elogio do Desenho na obra de Lafetá

                         O desenho sempre foi elemento necessário da pintura até que veio a abstração, quando perdeu a função de arcabouço da composição. Pode-se dizer que o desenho era - na pintura, antes do Impressionismo - o esqueleto,  e a pintura, a pele que lhe cobria e encobria as formas e lhe dava uma infra-estrutura.
                        Sucede que mesmo antes da pintura abstrata, a função do desenho esmaecia, como afirma Ferreira Gullar no seu livro Sobre Arte, Avenir Editora, Rio de Janeiro, 1982, e Palavra e Imagem, São Paulo, 1982: “Basta pensar em Matisse, que não apenas levou sua pintura a uma extrema simplificação como fez o mesmo com o desenho: o tema figurativo era um mero pretexto para o desenrolar do traço melódico sobre o branco do papel. Ali, o desenho quase não é.”
                        André Lafetá é um pintor que faz pintura-pintura de linguagem contemporânea, mas que ainda usa, em seu ofício, quase o mesmo método dos Renascentistas, já que todos os mestres da Renascença e pós-Renascença sempre insistiram na importância do desenho para o ofício do pintor. Ele desenha antes de pintar, estrutura sua composição como o faziam os Old Masters. Não só no Coisário se percebe que há um desenho estruturando a composição: também no Memorial do Ser a presença do desenho faz a marcação dos lugares dos objetos, das coisas, do coisário. As personagens da mansarda estão presentes através das coisas que as identificam, desde um velho sofá, onde uma avó tricotava, até um armário, lugar onde guardamos nossas relembranças.

O Coisário das Coisas – uma arqueologia

                        Antes de analisarmos o Coisário, onde coisas são guardadas na memória, vamos definir Coisa e Objeto. A diferença entre os dois é simples. Objeto é algo sem vida; Coisa tem vida e metafísica, ela revivencia o passado e o faz presente. A Coisa se faz mito e cria mitologias próprias.
                        Se olharmos com atenção para os objetos da pintura de André Lafetá, iremos perceber que estamos diante também de uma arqueologia da memória. Arqueologia de cores incomuns, a alertar-nos que a nossa memória é ruína, e só o tempo nos resta. O tempo a tudo apaga. Em troca, nos faz memória. A poesia que emerge dos objetos retratados nem é lírica, nem dramática. Mas não fica neutro nosso olhar. Nosso olhar nunca olha desarmado. Nosso espírito e nossa alma também são armas de grosso calibre. O que vemos na pintura de André Lafetá?
                        Os objetos retratados são antigos pela forma e pelo conteúdo. É uma viagem ao passado, quando ferros de passar roupa eram a carvão. Sua forma já era a atual, mas as lembranças daquele tempo se sucedem; recordações muitas vezes de um tempo que sequer vivemos, mas que de modo estranho vivenciamos agora.
                        As cores de André Lafetá são incomuns, mas emocionantes. E nos estimulam por nos ofertarem as ruínas de um passado recente, mas findo. Ciclos universais da vida no planeta. O observador deve atentar para as cores insólitas, tons que nos fazem lembrar pela emoção, não pela razão. As ruínas dessa arqueologia já nos pertencem, fazem parte do passado universal da humanidade.
                        O nome dado por André Lafetá de Coisário é um neologismo verbal, a demonstrar a intenção do grande pintor de alertar-nos para o lado temporal de sua poesia cromática. Coisário é onde se guardam coisas, as que acumulamos durante a vida. Vejamos as bizarras fechaduras antigas, a abrir o portal de nossa memória ancestral, da casa da vovó, com seu Coisário infinito, a fazer parte dessa arqueologia sentimental de cores e formas. As cores ora são puras, ora não são puras, como é a memória. Lembramos do que nos fez felizes e procuramos esquecer do resto. 
                        André Lafetá buscou cores neutras ou combinadas para dar um sabor neutro, ao ver que a memória é um templo esquecido no desvão da vida, ruína de um tempo partido, tempo que ficou engastalhado nos objetos de uso, que um dia pertenceram a alguém ou a qualquer casa de uma aldeia qualquer. São muito mais símbolos que objetos. Ícones do passado que se foi ou está partindo, embora despercebido pela velocidade do tempo presente. Daí o universal de sua pintura contida, mas intensa e emocionante.
                        Nas prateleiras de nossa memória temos também um Coisário. Coisário que se acumula ao longo de nossas vidas, sem que nós percebamos. Por isso, as cores intensas de André Lafetá; cores que ora se atraem ora se retraem.
                        Tons alaranjados misturados a ocres. Vermelhos vivos em oposição a verdes ácidos; amarelos solares diante de azuis lunares. Há uma luta surda de cores e formas nas prateleiras do Coisário. Estamos diante de um universo pictórico insólito, e que nos atrai. O universo de André Lafetá cria mitos e nos impele a criar em nosso Ser o nosso próprio Coisário, nosso próprio universo de cores, nossa própria arqueologia do Ser, nossa própria ruína do passado, nosso templo sentimental de cores e formas.
                        O Coisário existe graças à inventividade de André Lafetá que, além de pintor criativo é também inventor. Essas coisas inventadas são personagens de uma história passada e ultrapassada; história que busca criar um novo universo de coisas dentro da memória do ser humano. Poesia visual rara, esse Coisário das Coisas.


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